Por Daniel Rocha*

Quem transitava pela avenida presidente Getúlio Vargas nos primeiros  tempos da história de Teixeira de Freitas? Quem no entorno  morava e convivia? Obviamente que em mais de 40 anos do logradouro não é possível dizer muito sobre todos, mas recorri à memória em torno do lugar para falar da maioria  dos  anônimos transeuntes, os trabalhadores.

Sobre  essa questão, conversei  informalmente com  Maria Neuza, uma trabalhadora  doméstica aposentada,  antiga moradora do bairro da Lagoa, Centro, sobre a  avenida que naquela parte  da cidade, próxima às famosas gameleiras, registrou um certo movimento a partir da instalação de uma serraria, a Divilan, que também construiu e disponibilizou casas para os operários.

Lembrou a antiga moradora que na época, início da década de 1970,  a avenida não passava de um estrada de chão cercada por estradinhas de terra dentre os matos, isso em 1973 quando foi morar no local depois de ter trabalhado em outras residências após ter migrado do povoado do Santo Antônio em busca de trabalho.

Descrevendo a paisagem que encontrou, revelou que quando chegou na avenida só existia a Serraria Divilan e as casas onde ficavam os trabalhadores com suas famílias.  “Em frente a Divilam tinha uma torre que sustentava algo tipo  uma caixa d ‘ água que servia a serraria e alguns profissionais que vieram trabalhar e residiam por ali por um tempo. A serraria só dava casa para quem vinha com a família”. 

Sobre sua fixação no lugar, contou que seu primeiro emprego no povoado teixeirense foi em uma “casa de família” e depois em um bar, onde comia e também dormia, que ficava naquelas imediações da avenida, depois da gameleira que ,apesar de ser  na época uma pequena árvore, já era uma referência para os moradores e passantes.

O bar  onde ela conseguiu emprego pertencia a um senhor que era  mais conhecido como “Seu Filó”,  que era casado com uma senhora por nome “Jô”. O casal era muito conhecido pelos  moradores das proximidades da avenida, principalmente pelos trabalhadores das serrarias que costumavam frequentar o lugar.

Getúlio Vargas década de 1970. Gameleira já se destacava

No bar, além de bebidas alcoólicas e uma cerveja sempre geladinha, era vendido comida, tipo janta, e refrigerantes. Também era possível encontrar no lugar picolés e sorvetes, uma novidade para época.

Como “empregada”, ela ficava no balcão do bar atendendo a clientela junto com o dono que era quem servia as  bebidas, recebia e passava o  troco. Nessa perspectiva, recordou  que os trabalhadores da serraria costumavam ficar até tarde da noite fumando, “bebendo uma temperada” enquanto conversavam “assuntos diversos” naquele que era um dos pontos mais procurados da escura avenida.

“A casa melhorzinha que tinha eram essas das serrarias, o resto era tudo casa ruim. Eu tinha medo de andar à noite porque era muito escuro.A luz do gerador só chegava até a gameleira, depois era tudo escuro.  Eu estou com 66 anos, naquele tempo eu tinha 17 anos.”

Como quem conta algo  proibido, Maria Neuza revelou um fato sobre os hábitos dos clientes da época e os transeuntes que costumavam parar à noite na venda de “Seu Filó”: para além dos petiscos e bebidas, no  fundo do bar tinha uma área  secreta reservada para jogos de azar. Isso em uma época em que a Ditadura Militar, amparada pelo  Ato Institucional nº 05, o AI-5, proibia  reuniões de qualquer natureza e a livre circulação através do toque de recolher e da repressão policial.

“Na frente  ,de primeiro, era uma sorveteria, depois botou comida e bebida pra venda…  muitos entravam em segredo, quando queria jogar entravam lá. Jogo naquela época estava proibido pela polícia, que também proibia ficar nas ruas. Eu não sei o que era jogado lá… nunca entrei pra saber.”

Do lago direito: torre da serraria Divilam. No lado esquerdo: Casas dos operários. Meados da década de 1970.

Seguindo com a narrativa da perspectiva da moradora, contou à Neuza que foi também que local, às margens da Avenida, naquele ambiente tomado por trabalhadores, bebidas, sorvetes e jogos proibidos que ela conheceu seu primeiro amor, o jovem trabalhador Deusdete, que costumava transitar pelo lugar e parar sempre  para  comprar algo.

“Foi lá que conheci meu marido,o finado João, ele era um rapazinho novinho e eu  também novinha… eu não sabia passar troco …. aí ele chegou pediu picolé.  Eu demorei para atender o pedido  porque fiquei esperando Seu Filó  chegar para receber, mas ele demorou. Irritado com a demora, João me chamou de tamborete de forró, mas eu era desaforada  e andava com a resposta na ponta da língua…  na lata chamei ele, que era negro,  de ‘picolé de asfalto.’ Nervoso ele veio pra cima de mim e eu joguei a cadeira, seu Filó veio e apartou a briga. Um ano depois fui trabalhar na casa de uma outra família que tinha bar na Vila Vargas, tomava conta da casa e ajudava no atendimento do bar, lá nos reencontramos, nos apaixonamos e casamos…. vivemos juntos até a morte dele.”

Por fim, as lembranças da moradora Maria Neuza informam que, tal como no presente, as peculiaridades da cidade, já histórica, estão associadas à capacidade dos moradores de fazer lembrar o passado no  seu espaço cultural do presente que é de constante mudança. Por isso, contar ou conhecer a história da cidade e da sua principal avenida,  passam  não só pela valorização das construções, fotografias antigas e traçados, mas também das memórias que em seu entorno foram criadas, e  também apagadas e silenciadas, que aliás é o assunto do nosso próximo texto da série.

Fontes e referências

NORA,Pierre. Entre a memória e a história: a problemática dos lugares. 

ZACHARIADHES, Grinaldo Carneiro, IVO, Alex de Souza, SANTOS, Andreia Cristiana. Ditadura militar na Bahia novos olhares, novos objetos, novos horizontes · Volume 1 – 2009. Editora UFBA.

Conversa informal com Maria Neuza realizada no dia 23/01/2022

Fotos: Museu Virtual

Daniel Rocha da Silva*

Historiador graduado e Pós-graduado em História, Cultura e Sociedade pela UNEB-X.

Contato WhatsApp: ( 73) 99811-8769 e-mail: samuithi@hotmail.com

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