Por Daniel Rocha

No cotidiano das Casas de Câmara e Cadeia da Bahia, a rotina refletia com clareza a organização social e o peso do poder colonial. Mais do que prédios administrativos, esses espaços, tal como os portos, eram verdadeiros microcosmos da vida nas vilas: ali se decidiam os rumos políticos, se julgavam delitos, se controlavam os corpos e se afirmava a presença da Coroa portuguesa em terras distantes.

Durante o dia, as salas da Câmara abrigavam reuniões entre vereadores, juízes ordinários e escrivães. As pautas variavam desde a arrecadação de impostos e o registro de terras até disputas entre fazendeiros, ordens de prisão e determinações sobre o abastecimento de mantimentos. 

Em Caravelas e Prado e Nova Viçosa, as cadeias ficavam próximas ao porto, o que facilitava tanto o transporte de presos quanto o controle sobre o comércio marítimo em uma época em que o movimento dos  portos definia o status das vilas.

Nos porões ou nos fundos do mesmo edifício, a realidade era outra. O cárcere reunia presos de diferentes origens: ladrões, desertores, escravizados fugitivos, endividados e até opositores políticos. 

O ambiente era úmido, insalubre e superlotado. Muitos aguardavam por meses o julgamento, dormindo sobre o chão de pedra, alimentando-se de restos trazidos por  escravizados ou pelos próprios guardas. O cheiro forte e o calor tornavam o espaço quase irrespirável.

Casa de Câmara e Cadeia de Nova Viçosa. Década de 1950

Um dos exemplos mais marcantes do cotidiano dessas Casas de Câmara e Cadeia ocorreu em Nova Viçosa, na década de 1880, quando o país já vivia os últimos anos da escravidão. 

Em abril de 1884, quinze escravizados da Fazenda Mutum, localizada entre Nova Viçosa e Caravelas, decidiram fugir antes da colheita do café. O ato, por si só, era uma declaração de liberdade — uma ruptura com o sistema que os reduzia à condição de propriedade. Poucos dias depois, o fazendeiro José Antônio Venerote foi morto numa emboscada, e a fuga passou a ser interpretada como revolta.

Os fugitivos negaram o crime, afirmando que buscavam apenas forçar a venda para outro senhor, já que sofriam maus-tratos e não recebiam o mínimo para sobreviver. A fuga, portanto, não era apenas um gesto de desespero, mas também um ato de consciência, de quem sabia o valor da própria força de trabalho e entendia que, sem eles, o engenho e as plantações paravam.

Sete dos fugitivos foram capturados e levados à Casa de Câmara e Cadeia de Nova Viçosa. O prédio, que concentrava o poder local, transformou-se em palco de uma encenação de justiça. Ali, sob o olhar severo de autoridades e fazendeiros, foram interrogados e pressionados até confessarem o assassinato. Entre as acusações, surgiu o nome de Francisco Ferreira da Câmara, outro fazendeiro influente, apontado como mandante do crime.

Francisco fugiu da vila e só foi julgado seis anos depois, sendo absolvido. Já os escravizados, julgados sem defesa adequada, tiveram destino trágico. Seu único defensor foi o padre Geraldo Xavier de Sant’Anna, abolicionista conhecido na região, que tentou argumentar sobre a ilegitimidade das confissões obtidas sob tortura. Ainda assim, a sentença foi implacável: condenação exemplar, para servir de aviso a quem ousasse desafiar a ordem.

O episódio escancarou a função real daquelas casas: mais do que templos da justiça, eram instrumentos de poder e repressão, onde as decisões jurídicas reforçavam a estrutura social vigente. A separação entre a Câmara e a Cadeia era simbólica — acima, os senhores deliberavam sobre leis e propriedades; abaixo, os cativos e pobres sentiam o peso dessas decisões.

O julgamento dos escravizados de Nova Viçosa também revela como essas edificações, mesmo no final do século XIX, ainda eram símbolos da continuidade do regime colonial. Nelas, o poder se mantinha centralizado, e a justiça, longe de ser imparcial, servia aos interesses da elite agrária.

Hoje, os vestígios desse caso sobrevivem em documentos e antigas páginas de jornal que ainda contam fragmentos de uma história marcada pela desigualdade. As paredes que resistem ao tempo — testemunhas de ordens, gemidos e sentenças — permanecem de pé como ecos silenciosos de uma época em que a liberdade era crime e o direito, privilégio de poucos.

Por fim, reconhecer e preservar essas edificações e sua arquitetura é mais do que cuidar de ruínas: é manter viva a memória do que fomos. Relembrar as Casas de Câmara e Cadeia é revisitar um cenário onde se cruzavam o poder e a resistência — a vida dos que mandavam e, sobretudo, a coragem dos que ousaram desafiar o destino imposto.

Fontes:

  • PAIVA, Manoel Ferreira de. Defesa do Tenente Coronel António José Gomes Loureiro. Lisboa: Na Impressão Régia, 1825.
  • RUSSELL-WOOD, A. J. R. Society and Government in Colonial Brazil, 1500-1822. London: Variorum, 1978.
  • SILVA, Tadeu Caires. A rebeldia escrava e a derrocada da escravidão na Colônia Leopoldina (1880-1888).

Daniel Rocha da Silva
Historiador graduado e pós-graduado em História, Cultura e Sociedade pela UNEB-X.
Contato: WhatsApp (73) 99811-8769 | E-mail: samuithi@hotmail.com . Comunidade no Facebook

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