Por Daniel Rocha

Mito, do grego mýthos, é uma narrativa tradicional e fantasiosa cujo objetivo é explicar a origem e existência das coisas e dos lugares. Teixeira de Freitas, BA, tem uma versão mítica sobre o modo como surgiu e se transformou em cidade, propagada no hino oficial, que consente e reforça, dentre outras coisas, uma narrativa oficial e desenvolvimentista criada pela propaganda militar durante a abertura da BR-101, na década de 1970. Essa narrativa nega e esconde aspectos relevantes do nosso passado.

Selecionado por meio de um concurso realizado pela casa legislativa em 2007 e oficializado pelo prefeito Apparecido Staut, através da Lei nº 460/2008, de 11 de agosto de 2008, o hino oficial do município foi escolhido por uma comissão julgadora encarregada de avaliar:

“O conteúdo dos áudios e os aspectos técnicos, o sentido das letras inscritas, a qualidade musical das composições que abrangeram a história do município, a poesia, criatividade, musicalidade, originalidade, inovação, autenticidade e adequação à linguagem.”

capture-20151017-161626 (1)
Em 1970, Teixeira de Freitas possuía casas e ruas sem estrutura, sem desenvolvimento.

Seguindo esses critérios, a comissão selecionou, entre outros inscritos, a composição intitulada “De São José a Teixeira de Freitas”, de Carlos de Andrade, jornalista, radialista e compositor de hinos religiosos. Em segundo e terceiro lugares ficaram João Carlos e a professora Josinéia Amparo Rocha (UNEB – X).

O hino vencedor, cuja beleza e melodia são reconhecidas, reproduz, de modo não intencional, uma narrativa poética e fantástica do “nascimento da cidade”, como se percebe na passagem: “Entre flores, frutos e montanhas. O rio Itanhém te amamentou em paz. Se multiplicam os filhos deste solo. Na pujante glória do teu amanhã.”

A música também traz elementos do discurso desenvolvimentista, amplamente disseminado na década de 1970 pela propaganda do governo do estado da Bahia, no trecho: “Oh, que tesouros infindos brotaram. No crescente fértil da 101.”

A citação à BR-101 remete à narrativa mítica de que o povoado de Teixeira de Freitas surgiu animado apenas por fatores econômicos, empresariais e políticos em meados do século XX, ignorando a dinâmica territorial existente na década de 1950, quando a região foi classificada como Extremo Sul baiano.

capture-20171001-185015
A BR-101 simbolizava a chegada do progresso.

Como mencionado, o discurso de que a região cresceu economicamente a partir da abertura da BR-101 foi amplamente disseminado pelo governo do estado nas décadas de 1960 e 1970, em consonância com a propaganda do governo militar, que destacava os avanços econômicos, omitindo os impactos sociais e negativos provocados pela construção da rodovia. Isso pode ser observado no título de uma propaganda publicada no jornal O Globo em 1974:

“Com a abertura da rodovia BR-101 ao tráfego, a região Sul da Bahia tornou-se, ao mesmo tempo, viável em termos industriais, turísticos, pesqueiros e madeireiros. A partir dos estudos e projetos de instalação ou ampliação empresarial, o desenvolvimento daquela área ficou dependente de uma série de fatores, todos em estreitas vinculações.”

Essa perspectiva, de que o hino reforça um discurso ufanista, converge com as reflexões da historiadora Liliane Maria Fernandes C. Gomes, da UNEB – Campus X, no artigo Teixeira de Freitas – Ditos e Não Ditos: Uma cidade em disputa de memórias (2015).

No artigo, a historiadora informa que esse discurso foi divulgado ao longo dos anos, principalmente na edição especial de aniversário do jornal Teixeirense Alerta, que durante anos abriu espaço para narrativas pioneiras que reforçavam a ideia de que a cidade cresceu graças à abertura da BR-101, à exploração madeireira e à chegada dos migrantes capixabas, empresários e políticos, ignorando, dentre outras coisas, as antigas comunidades rurais que deram origem ao povoado também chamado de “Comercinho dos Pretos.”

capture-20171001-210207
Mão de obra local. Os pioneiros.

Ainda conforme a análise, os jornais ignoram o impacto econômico provocado pelo fim da estrada férrea Bahia – Minas em 1966, que por mais de 80 anos movimentou o fluxo de pessoas e o comércio no extremo sul, além da decadência das cidades portuárias de Caravelas e Alcobaça, às quais o povoado de Teixeira de Freitas estava subordinado.

Além disso, o hino também reforça um saudosismo recheado de interesses que visa a manutenção de um status quo local, algo evidente na citação de nomes de algumas famílias no trecho: “Dos Nascimentos, Oliveiras, Guerras, Almeida, Antunes, eis o seu fulgor.”

Embora o uso do plural denote uma tentativa de não se referir apenas a algumas famílias, a citação reforça a disputa pelo pioneirismo e pela memória na cidade. Essa intenção também foi observada pela historiadora Liliane Fernandes no artigo sobre o tema.

“Ainda em relação às disputas de memórias, pode-se inferir, pelo exposto, que a memória oficial busca mostrar a Teixeira de Freitas que ia ser, e não a Teixeira de Freitas que era. Esta, através deste olhar, não seria digna de texto. Não teria história.

Em atendimento a essa concepção, Teixeira de Freitas passa a contar quando nela se instalam instituições governamentais, entre elas, o símbolo do progresso – a BR-101, expresso de ponta a ponta na cidade, que agora constaria no mapa e teria sua escrita assentada na história da Bahia.”

capture-20171001-195204
Nos jornais, o “desenvolvimento” da região foi destaque na década de 1970.

Assim, diante desta perspectiva, afirmo que o mito disseminado pelo hino consente com a construção de uma versão da “história” moldada por interesses econômicos, produtivos e políticos, mantendo uma estrutura social imaginária carregada de silêncios e preconceitos. É necessário que todos pensem além do hino da cidade e do “mito” popularizado por ele. Por mais construtiva, bela e onírica que seja a visão propagada pela canção, só assim entenderemos melhor o lugar onde habitamos, expressamos nossas diversidades e enfrentamos as contradições do presente.

Fontes:

TEIXEIRA DE FREITAS – DITOS E NÃO DITOS: Uma cidade em disputa de memórias. LILIANE MARIA FERNANDES CORDEIRO GOMES.

Bahia 74. Integração. As estradas do Progresso. Propaganda. Jornal O globo 1974.

Imagem: Trevo da cidade década de 1970. Print do vídeo Memorial Legislativo Teixeira de Freitas.

Daniel Rocha da Silva*

Historiador graduado  e Pós-graduando em História, Cultura e Sociedade pela UNEB-X.

Contato WhatsApp: ( 73) 99811-8769 e-mail: samuithi@hotmail.com

O Conteúdo  deste Site não pode ser copiado, reproduzido, publicado no todo ou em partes por outros sites, jornais e revistas sem a  expressa autorização do autor. Facebook

Veja Também:

Um lugar de memória no bairro Nova América

Filmes que marcaram época em Teixeira de Freitas : Batman – O Retorno

Mulheres parteiras em Teixeira de Freitas parte 01

Compartilhar: